Quatro amigos e artistas sem filtros nem censuras abrem as portas do seu mundo, naquela que é uma das artes performativas mais incompreendidas nos dias de hoje. Ser drag queen não é um capricho, mas uma forma de sentir que vai muito além da maquilhagem, jóias e roupas femininas exuberantes. Se fosse um filme de Pedro Almodóvar, os protagonistas seriam Jorge e Lola, Zé e Rebecca, Pedro e Sylvia, Zé e Marge.
É numa pequena casa, na Graça, em Lisboa, que todas as sextas-feiras e sábados a transformação acontece, antes das atuações na discoteca Trumps. Do corredor do prédio já se ouvem as gargalhadas e a música e, quando a porta se abre, para além do cheiro a pizza, surge a sensação de liberdade que invade todo o espaço. As imagens levam-nos numa viagem visual até aos filmes do realizador Pedro Almodóvar, onde reina a autenticidade e a mulher é protagonista.
O dia já adormece e as pequenas luzes penduradas na cama alta, com escadas ocupadas por perucas, iluminam a sala transformada em quarto. Um grande armário salta à vista. Ao se abrirem as enormes portas que dão acesso ao seu interior, perde-se a conta ao infindável número de roupas e jóias. Como se todo o brilho estivesse ali escondido e os holofotes ofuscassem a visão, como se o espetáculo já tivesse começado. Perto do armário, uma pequena mesa, onde também estão dispostos três desenhos, capta a atenção pela quantidade de pó fixador, pincéis, bases e esponjas. É neste momento que temos a certeza que chegámos à casa de Rebecca e de Lola Bunny.
A metamorfose
Há quem veja as drag queens como uma arte performativa, mais um trabalho, um escape ao quotidiano ou, por outro lado, um modo de vida com espaço para a liberdade. Há três anos, Jorge, 27 anos, apaixonou-se por este universo exuberante onde a vida parece um constante espetáculo. É na pele de Lola Bunny que a liberdade rasga preconceitos. “Ser drag queen é uma arte performativa onde posso ser e exprimir-me da maneira que quiser.” Na mesma altura, também Zé, 23 anos, se deixou enredar por este mundo tão diferente da banalidade dos dias, ao se transformar em Rebecca Bunny. Uma maneira de estar única que, segundo o jovem, não se presta a classificações: “Acho que drag é algo tão abrangente que não temos nem devemos arranjar uma definição. Há muita gente que diz que é a transformação de homem para mulher, mas não tem de ser propriamente assim. Por exemplo, hoje, vamos estar em drag, mas interpretaremos personagens mais masculinas, porque o tema da noite é Botch Queen. Eu vou estar de bigode, mas não deixo de estar a fazer drag. É assumirmos uma personagem que não é aquilo que vivemos no dia a dia. Uma mulher pode fazer drag feminino na mesma ou podemos transformar-nos em drag king, que é de mulher para homem… Há imensas versões. As pessoas são livres de fazer o que querem e bem entendem.”
“Ser drag queen é uma arte performativa onde posso ser e exprimir-me da maneira que quiser.”
Ao falar de transformismo, o empoderamento é outra das definições que o abrangem. Um ato missionário que tem como objetivo quebrar estereótipos e enaltecer a figura feminina, tal como ambiciona Pedro, 23 anos, que há um ano recria Sylvia Konnz: “Fazer de drag é empoderamento feminino. Na vida, não tive muitas representações de mulheres poderosas, mas sempre que via alguma ficava impressionado. Então, para mim, ser drag é representar o meu lado feminino que muita gente critica. Acho que ainda existe muito machismo na sociedade. Por isso, dá-me muito prazer representar esse lado e tentar destruir essa barreira.”
Aliado à arte, à criação de personagens e ao empoderamento, o drag possibilita, para muitos protagonistas, a exploração do próprio interior e a abertura de caminhos muitas vezes adormecidos. “É ter, durante aquelas horas, a possibilidade de explorar partes de mim que não conhecia”, confessa Zé, dono dos seus 28 anos e que trabalha no ramo como Marge Mellow, há um ano e meio.
Começa a ser servida a pizza e os copos de vodka com laranja rapidamente se espalham pela casa. São 21h00, não há muito tempo a perder. O processo de transformação é demorado e, apesar do ambiente descontraído, cada um dos quatro amigos ocupa o seu camarim improvisado.
A estreia no transformismo
No caso de Pedro (Sylvia Koonz), foi na infância que vivenciou os primeiros sinais de identificação ou fascínio pela figura feminina: “Desde pequeno que brincava com bonecas, mas nem a minha forma de vestir nem a minha personalidade foram muito femininas. Desde que comecei a fazer drag queen noto mais isso. Desde muito cedo que tive curiosidade. Quando saia do banho, com 11 anos, metia a toalha e cantava em frente ao espelho. Surgiu muito daí. Sempre tive muita vontade, sempre fui fascinado pelas mulheres, pelas roupas, maquilhagem e joias”, lembra. Mas só aos 22 anos, através de um amigo, conheceu a arte e experimentou.
“É ter, durante aquelas horas, a possibilidade de explorar partes de mim que não conhecia”
Jorge (Lola Bunny) recorre à memória para tentar explicar a admiração que tem por figuras femininas e por, como se autodescreve, “ser um rapaz mais feminino”. Foi criado por mulheres e nunca teve uma referência paternal. Além das ilações que remontam à infância, a vontade de fazer drag surge também da necessidade de se dedicar a uma área artística onde se exprima livremente: “Apesar de a minha formação ser em saúde, sempre senti necessidade de ter uma área onde me pudesse exprimir, uma área mais artística. Não canto ou danço muito bem, não pinto muito bem e, nesta arte, encontrei um sítio onde posso fazer um bocadinho de tudo, sem ter de ser extremamente bom nalguma dessas coisas. Também gosto muito de moda, então, pude criar uma personagem muito fashion. Não preciso de cantar porque posso fazer lip sync, não preciso de dançar porque posso sensualizar… É um escape para essas coisas todas que achava que precisava”, explica.
A moda está diretamente relacionada com o mundo Drag e Zé (Rebecca Bunny) admite que sempre sentiu muito fascínio por peças femininas. Com a chegada a Lisboa e o convívio entre amigos, ficou a conhecer o famoso programa “RuPaul’s Drag Race”, um talent show norte-americano da produtora World of Wonder com o objetivo de descobrir a próxima “America’s Next Drag Superstar”, ou seja, quem manifestar ter mais carisma, singularidade, coragem e talento pode ser a eleita. A produção apresentada pela drag queen RuPaul chamou-lhe a atenção e atraiu-o até esta nova realidade.
“Não considero que a Sylvia seja uma personagem nem considero que a tenha criado. Ela é parte da minha personalidade. Só decidi dar-lhe um visual e ela existe neste momento”
Por outro lado, Zé (Marge Mellow) conta que a sua entrada no mundo Drag começou como mais um trabalho em que, por acaso, tinha de fazer de mulher. Apesar de, na sua infância, ter vestido várias vezes as roupas da mãe e irmã, a ideia de criar realmente uma personagem feminina nunca lhe tinha passado pela cabeça. “Antes de fazer drag, já via um programa de televisão sobre isso e nunca tinha pensado em fazer. Gostava de ver e aprecio muito a arte, mas só quando me foi apresentada a hipótese é que pensei «Então vamos lá experimentar!»”, esclarece.
A base espalhada pelo rosto e o batom carregado nos lábios passa a vida real para segundo plano e dá espaço, mais uma vez, a quem eles querem ser esta noite. A pouco e pouco, Lola Bunny, Marge Mellow, Sylvia Koonz e Rebecca Bunny surgem através dos traços vincados deixados pela maquilhagem.
O processo de drag passa pela criação de uma persona: “Eu sou o Zé e vou sempre ser o Zé. A Rebecca Bunny é só uma personagem que criei e que adoro. Sou só o criador. Essa personagem existe, mas se um dia eu quiser mudar, se estiver farto, enterro-a. A Rebecca é muito o que eu antes desenhava. Toda aquela mulher que idealizava, agora transporto essas características para a Rebeca e, em palco, é a mulher poderosa, super trend, que estava sempre on point. É isso que sinto quando estou em personagem.” Para outros, não passa de uma extensão do seu ser, o atribuir de um visual e um nome a alguma parte da personalidade que, de algum modo, se retrai no dia a dia. “Não considero que a Sylvia seja uma personagem nem considero que a tenha criado. Ela é parte da minha personalidade. Só decidi dar-lhe um visual e ela existe neste momento”, explica Pedro (Sylvia Koonz). Jorge (Lola Bunny) partilha a opinião e afirma que a base é a mesma. “Temos muitas coisas em comum. A Lola acaba por ser uma extensão do Jorge, uma vertente que se exprime de uma maneira artística diferente de mim. Se eu sair à noite ou se tiver a dançar, não me vou exprimir da mesma forma que a Lola. Ela é só o Jorge com algumas características diferentes. Ela é muito mais desinibida, simpática. Sei lá… Por medos, por receios, por coisas que criamos, por proteção. A Lola não. Como é uma arte performativa, acabamos por estar expostos e por termos público. Por isso, temos de estar mais pré-dispostos. Ela é mais sensual do que eu, é mais bonita. Mas a base é muito a mesma: o gostar de moda, o querer ser diferente, o gostar de fazer as pessoas sentirem-se bem. Esse é muito o meu drag.”
“Todos nós que fazemos transformismo sentimos isto como uma forma de ativismo.”
Orgulho sem preconceito
Poucos são os casos conhecidos onde a vida de quem pratica esta arte performativa, muda para pior. “Noto que ganhei mais à-vontade e mais confiança enquanto Zé, depois de ter a Marge. Por razões óbvias. A Marge é uma personagem que ganha muito destaque na noite gay, tal como qualquer uma das outras grag’s. E sinto que ganhei com a Marge”, acrescenta.
Tal como Zé (Marge Mellow), Pedro (Sylvia Koonz) admite que fazer de drag lhe permitiu descobrir outros lados da sua personalidade que desconhecia e lhe deu uma desinibição que até então não possuia: “Nunca tinha pisado um palco. Lembro-me que, na escola, nas apresentações nem conseguia falar. O drag ajudou-me muito a saber lidar com público, conseguir ser uma voz para muita gente. Todos nós que fazemos transformismo sentimos isto como uma forma de ativismo.”
“O drag ajudou-me a perceber que posso ser quem eu quiser, do jeito que eu quiser e tornou-me muito mais feliz, com muito mais confiança em mim.”
A arte do transformismo permite também a junção de vários lados artísticos e foi essa característica que, desde cedo, fascinou Zé (Rebecca Bunny): “Encontrei no drag uma estabilidade que me fez juntar lados artísticos que adoro. Por exemplo, antes desenhava muito e fazia muitas ilustrações. Agora, com a maquilhagem, isso ganha asas. Quando tenho alguma ideia, faço croquis da roupa e looks que quero usar, o que me ajuda muito. Tenho muito mais prática em transmitir o que quero dessa maneira. Acabei por conjugar imensas coisas de que gosto, tais como a música, a moda, a maquilhagem numa só, ou seja, na Rebecca.”
Para além da desinibição e da possibilidade de explorar lados artísticos, a subida de autoestima é uma das mudanças evidentes no exercício desta arte. Como revela Pedro (Sylvia Koonz): “Começar a fazer drag subiu-me imenso a autoestima. Sinto-me muito poderoso, como se tivesse uma armadura que não permite que ninguém me destrua.”
Jorge (Lola Bunny) concorda, confessando que antes era uma pessoa pouco consciente de algumas das suas qualidades: “Era mais triste, talvez por sempre ter sido mais feminino e não saber como poderia expressar isso de uma forma que não fosse tão relacionada com a homossexualidade. O drag ajudou-me a perceber que posso ser quem eu quiser, do jeito que eu quiser e tornou-me muito mais feliz, com muito mais confiança em mim.”
Gerir o ser: o dia e a noite
Ser uma pessoa à noite que atua, dança, brilha, canta, fala… Ser outra de dia por trás de todo o glamour e excentricidade leva ao desgaste físico e emocional. São várias as razões que induzem, muitas vezes, a uma pausa na “carreira” ou mesmo ao “enterrar” da persona. O conciliar de duas personalidades distintas, o misturar de duas “almas” é um processo que os quatro amigos classificam de “complicado e de difícil gestão”. Pedro (Sylvia Koonz) admite esquecer-se tantas vezes de si mesmo que a Sylvia ganha destaque. “Não compro roupa para mim há um ano, só invisto nela”, refere. Contudo, diz não lamentar a situação e admite que consegue lidar bem com a dualidade. Já Jorge (Lola Bunny) assume já ter pensado em acabar com a Lola por ser demasiado exigente: “Não achava que estava a conseguir transmitir exatamente aquilo que queria. A partir do momento em que começamos a trabalhar num sítio fixo, isso acaba por condicionar um pouca a nossa persona, porque é um estilo e música, um tema. Gosto de me exprimir de maneira diferente das outras. É por isso que fiz todo um marketing da minha Lola. Pensei nas características que queria que ela tivesse e gostava que a mensagem dela fosse mais efetiva. Houve uma altura em que considerava que essa ideia não estava a passar, então, senti-me desmotivado e achei que, se calhar, não era o melhor caminho.”
Jorge (Lola Bunny) encontra-se em frente ao espelho indeciso com a escolha das lentes de contacto que irá usar. Estas são um dos acessórios mais utilizados pelas drag’s. Esta noite será a única a colocar e acaba por optar por umas verdes esmeralda. Batem à porta. Entretanto, mais quatro amigos juntam-se ao encontro, com garrafas na mão. Já é um hábito fazer a festa antes das duas da manhã, hora a que têm de se apresentar na discoteca. O som da música aumenta e o ambiente é de animação e descontração.
No mundo familiar
O medo da rejeição, a dúvida relativa à aceitação, a curiosidade. Uma das maiores questões intrínsecas a esta realidade é a maneira como as famílias lidam com esta arte. Se algumas aceitam sem hesitar, existem outras que não entendem e ainda há as que desconheçam por completo as opções dos familiares. Zé (Marge Mellow) admite que a mãe já sabe da sua orientação sexual há muito tempo. “Quando eu comecei a trabalhar em drag, disse-lhe logo que ia começar a fazer este trabalho. A única preocupação dela é se me acontece alguma coisa por causa de terceiros”, confidencia.
“São os meus pais, a minha família e eu respeito toda a gente. Por isso, só quero ser respeitado.”
Jorge (Lola Bunny) assume que a mãe sabe da sua relação com uma pessoa que faz de drag, mas desconhece que o filho tem esta atividade profissional. Quanto à irmã, conta, “teve uma reação um pouco ambígua e, por isso, resolveu investigar. Comprou livros, foi ler matérias, ver programas. Tinha, inclusive, uma amiga que frequentava o clube e que lhe passava mensagens positivas sobre nós”, declara. Já as palavras do cunhado acabaram por ser motivadoras: “Disse-me que sempre soube que eu tinha de me expressar de alguma forma artisticamente e se esta era a área com a qual me identifico e sou feliz, deveria continuar.”
Zé não tece muitas palavras sobre o assunto, mas acredita que não deve nada a ninguém. “São os meus pais, a minha família e eu respeito toda a gente. Por isso, só quero ser respeitado.” Contudo, o jovem drag afirma que a sua família vê as suas redes sociais e este publica o que quer. Por outro lado, Pedro (Slyvia Koonz) receia a reação dos pais e, por depender muito deles, apenas contou à irmã.
É meia-noite e meia e as maquilhagens dão-se como finalizadas. Com a roupa escolhida, cada um segue a forma como lhe é mais conveniente arranjar-se. Se a peruca primeiro, as joias ou a roupa. Loiras, cor-de-rosa, castanhas, verdes, compridas, curtas. A escolha da peruca está sempre relacionada com a roupa e com o tema da performance dessa noite. Pedro (Sylvia Koonz) afasta-se dos amigos e, no quarto ao lado, prepara o espartilho. Com a ajuda de um amigo, aperta-o atingindo as curvas que pretende. Após o espartilho, coloca enchimento para dar volume ao seu traseiro. Todas estas técnicas são, segundo Pedro, utilizadas para disfarçar o corpo masculino. Os órgãos genitais são cobertos através da utilização de roupa interior justa e várias camadas de collants que escondem a vultuosidade.
Os elevados custos do glamour
Poucos são os que conseguem viver apenas das performances enquanto drag queen e muitas são as limitações em território nacional. Apesar de ser um tema cada vez mais mainstream e de começarem a surgir bares onde este tipo de arte performativa é uma constante, o trabalho, por norma, é mal remunerado. Aliado a estes obstáculos, o acesso a material é muito restrito e dispendioso. Muitos dos artistas encomendam perucas de fora e têm de mandar costurar roupa.
“Em geral, drag é muito mal pago. Nós tivemos sorte, estamos num clube de renome e somos bem pagas no panorama nacional, mas não é uma arte fácil.”
Zé (Rebecca Bunny) é um dos poucos profissionais que consegue dedicar-se apenas à sua drag: “Eu só faço drag. Vou a eventos animar e trabalho todas as sextas-feiras e alguns sábados no Trumps. Sou uma drag que recebe muito bem, quando comparado com muitas que trabalham em Portugal. Tive a sorte de estar no Trumps, que é uma casa incrível, me acolheu desde o início e me dá todo o suporte de que preciso para viver daquilo que gosto de fazer.” Contudo, admite ser financeiramente difícil. “É tudo caríssimo. Ao início, é mesmo muito complicado. Agora, tenho imensa roupa e maquilhagem. Se me disserem o tema, consigo encontrar naquilo que tenho, alguma peça que se adapte ao que pretendem. Antes, muitas das vezes, vestia-me e aquilo que recebia pelo meu trabalho não cobria os gastos com a roupa e acessórios que estava a usar.”
O conciliar de trabalhos é a prática mais usual para este tipo de profissionais. Acumulam dois a três empregos e, ainda assim, não conseguem deixar para trás as atuações noturnas. Existem, inclusive, algumas pessoas que abdicam da profissão para a qual se formaram e optam por outras atividades com horários mais flexíveis para conseguirem aliar com a sua paixão. É o caso de Jorge (Lola Bunny) que era optometrista de formação e, quando começou a fazer de drag queen, decidiu ir trabalhar para uma loja. “Se eu quisesse fazer só drag teria de exercer um trabalho diferente do que aquele a que me dedico atualmente. Não poderia estar fixo só numa casa ou teria de me restringir mais aos ideais da mesma. É um bocadinho difícil. Em geral, drag é muito mal pago. Nós tivemos sorte, estamos num clube de renome e somos bem pagas no panorama nacional, mas não é uma arte fácil. Apesar de tudo isto ser caro, ainda se torna mais difícil porque não existe, em Portugal, um sítio onde se vá comprar boas perucas. Aqui são todas muito naturais para uma utilidade diferente do que a arte performativa que é ser drag”, desabafa Jorge (Lola Bunny).
Pedro (Slyvia Koonz) trabalha num call center durante o dia e apresenta-se como drag queen todas as sextas-feiras à noite. Durante dois anos, estudou Sociologia na universidade, mas cedo se apercebeu que essa não era a sua paixão.
“Se calhar, existem homens heterossexuais que têm curiosidade, mas como vivemos numa sociedade tão machista em que a masculinidade é tão frágil, isso não é tão comum ou por vergonha ou medo”
Zé (Marge Mellow) tem três trabalhos, mais as performances que faz no Trumps: “Sou designer em regime freelancer, trabalho num teatro a fazer produção e dou aulas a meninos pequeninos”, conta, não excluindo a hipótese de vir a trabalhar a tempo inteiro como drag queen. “Iria depender totalmente do quanto poderia receber”, admite.
A entreajuda é um dos lemas deste grupo de amigos que partilham os seus materiais de trabalho e o sítio onde os compram. Segundo Zé (Marge Mellow), o mais dispendioso são as perucas e os sapatos, pois a maquilhagem, apesar de ser cara, dura muito tempo.
Transformismo, transgénero e homossexualidade
É uma e meia da manhã. Após a longa transformação, chega a altura das fotografias para as redes sociais. A mudança é visível. As caras já não são as mesmas, os olhares transportam-nos para um lugar diferente. São elas: Lola Bunny, Sylvia Koonz, Rebecca Bunny e Marge Mellow. Em frente ao espelho, treinam alguns passos de dança e descontraem, enquanto bebem vodka por uma palhinha. As poses improvisadas dão a impressão que foram treinadas e a postura destas mulheres ganha força.
“O mais triste é que, muitas vezes, os outros respeitam mais a personagem do que uma pessoa transexual”
Desde que surgiu a profissão de drag queen que está envolta no velho estigma de que “todos os transformistas são homossexuais” ou de que “os transformistas são transexuais”. Jorge (Lola Bunny) esclarece que os termos não têm de estar obrigatoriamente no mesmo “saco”. “Drag é uma arte performativa em que nos podemos expressar como quisermos. Existem diferentes tipos de drag e todas as pessoas são bem-vindas. Como as raízes estão relacionadas com a comunidade LGBT, vamos encontrar mais homossexuais, mas não é obrigatório.”
Pedro (Slyvia Koonz) admite conhecer um homem heterossexual que está casado, tem filhos e faz de drag queen. “Se calhar, existem homens heterossexuais que têm curiosidade, mas como vivemos numa sociedade tão machista em que a masculinidade é tão frágil, isso não é tão comum ou por vergonha ou medo”, considera.
A transexualidade não é uma escolha. Trata-se de uma situação incontrolável, onde uma pessoa não se sente bem no seu próprio corpo e, por isso, decide proceder a uma cirurgia de mudança de sexo: “Ser transformista é uma arte, no meu caso performativa. A Sylvia só existe em certos momentos e porque quero. Ser transexual é completamente diferente. A pessoa é aquilo. O mais triste é que, muitas vezes, os outros respeitam mais a personagem do que uma pessoa transexual”, partilha Pedro.
“Às vezes, basta nos sentarmos e ouvirmos os outros sem preconceitos.”
Ser drag pode ser considerado um caminho fácil para pessoas que não se identificam com o seu género. Um caminho que serve de experimentação de forma a descobrirem o que realmente sentem e querem. “Não condeno nada disso e acho que drag é para toda a gente, mas depois traz ideias preconcebidas de que uma é outra e as duas têm de andar ligadas. Os transformistas vestem uma pessoa; um transexual passa mais por identidade de género. São questões do foro psicológico. Às vezes, até muito ligado à prostituição porque, como são pessoas que, muitas vezes, são incompreendidas e renegadas pela sociedade, infelizmente, vêm a prostituição como um caminho fácil e acabam por ir por aí. Foram esse tipo de ideias preconcebidas que tive de clarificar à minha família”, esclarece Jorge (Lola Bunny)
Zé (Rebecca Bunny) considera que “a sociedade confunde muito as coisas. Em Portugal, temos imensos atores e comediantes que interpretam personagens de mulheres em talk shows e novelas. São personagens drag. De certo modo, isso vem desmistificar esta ideia. Não é preciso ser gays ou transexuais para fazer drag”.
Combater o preconceito
“Acho que a sociedade portuguesa, em geral, não está preparada, não aceita muito bem. É muito confusa essa ideia de transexual, homossexual e drag queen. São todas definições que estão muito baralhadas na cabeça das pessoas. Pensam sempre: «Ah quer ser uma mulher!” ou “é só mais um gay a vestir a roupa da mãe”, refere Jorge (Lola Bunny), em tom jocoso.
A falta de informação, a desconfiança, as ideias pré-concebidas tornam difícil a continuação da caminhada. Contudo, são cada vez mais os programas relacionados com as drag queen’s ou as celebridades e youtubers que se mostram, servindo de exemplo de luta e de força. “Infelizmente, é preciso um programa de televisão tornar-se popular para as pessoas acharem que, afinal, isto é giro e não julgar quem o faz”, lamenta Zé (Marge Mellow), ao mesmo que defende que ainda que existe um longo caminho a percorrer. “As pessoas da nossa idade e mais novos já vão aceitando melhor, mas continuamos a ter um intervalo de gerações que se fossem educadas como deve ser e se tivessem espaço para querer aceitar, se tornaria mas fácil. Às vezes, o problema não é das pessoas, é de como está tudo formatado. O programa do RuPaul’s está a tornar-se mainstream, mas não em Portugal, não na nossa cultura. Por muito que achemos que existem figuras transexuais ou drag’s que aparecem em horário nobre na televisão e que, por isso, já são aceites, é mentira. Sempre que aparece uma figura desse género é como bobo da corte. É o caso, por exemplo, de José Castelo Branco ou Carlos Costa. Essas pessoas são sempre vistas como uma piada. É essa parte que está mal. As pessoas podem ser engraçadas, mas devíamos tentar perceber o que está por de trás delas. Perceber e ouvir. José Castelo Branco já explicou várias vezes a sua sexualidade e o porquê de se vestir assim. Ele é muito simples e muito transparente. Às vezes, basta nos sentarmos e ouvirmos os outros sem preconceitos.”
A chegada do táxi faz esquecer todos os problemas e as questões que envolvem o ser drag queen. O barulho dos saltos que descem as escadas acordam a noite. Está na hora de ir até ao Príncipe Real para mais uma performance. Cortinas vermelhas de veludo separam os bastidores do palco. Um grande espelho ocupa a metade superior da parede. As quatro amigas dão os retoques finais no cabelo, descontraem, dançam e cantam. No balcão, barman’s em tronco nu alimentam a euforia dos presentes, maioritariamente, de sexo masculino. O palco, em formato de passerelle, aguarda a entrada das drag queen’s, como se de uma passagem de modelos se tratasse. De repente, as quatro artistas abrem as cortinas e mostram-se à multidão que as aclama. As luzes coloridas transportam-nos para o grande armário do quarto. Estes são elas. Exatamente como querem ser.