Os furacões não fazem sexo por amor, é verdade. Galgam fronteiras, assediam, penetram pelas calvas mais cândidas da natureza e nunca se aprestam a comer sushi para comemorar seja o que for. São maus como as cobras e transtornam os senhores que trabalham nas televisões. Perdoe-se-me a generalidade, já que a menção visa apenas aqueles vultos que as redacções colocam nas marginais a matutar rajadas e que depois se tornam em verdadeiras pás de moinho que chagam a franja aos nervos, de ponta a ponta.
Cabelos hasteados pela ventania, as lentes dos óculos a imitar vigias de submarino, a roupa já a refogar e a voz, ah a voz, verdadeiramente em estado de pitonisa, a tremeluzir as cordas vocais e a esbravejar ao jeito dos grilos antes de serem esmagados por polegar de aço. Estes pobres repórteres, convocados para um acto tão nobre, acabam como que possuídos pela bernarda e não há interferência que lhes distraia a ‘palavra certa’ e o apetite abrasivo e vulcânico.
Aristóteles bem avisou há 25 séculos que a voz é “todo e qualquer som” que “é produzido pelo choque”. O choque já mareava, como se vê, na cabeça dos clássicos. Mais, escrevia o filósofo: “A voz implica que o ar da artéria-traqueia seja, devido ao ar inspirado, agitado contra as paredes daquela. A prova do que afirmámos reside no facto de apenas ser possível emitir voz quando se retém a respiração, e nunca quando se inspira ou expira, já que unicamente podem os seus respectivos movimentos ser produzidos devido ao ar se encontrar retido desta maneira. Sendo assim, é evidente a razão pela qual são os peixes afónicos”(1).
O que Aristóteles nunca pôde observar e analisar foi estas efígies a reportarem furacões, de frente para a crista das vagas, com a areia a chegar-lhes às brânquias e rapidamente a transmudarem-se em carpas e depois em tubarões tipo macilento, lívido, escaveirado. Qual afónicos, qual quê!
Estes descendentes dos antigos locutores que abriram a caixinha das imagens no tempo de James Dean são hoje salamandras anfíbias que entram em transe nos directos. Com o microfone numa mão e a outra a fazer de quebra-mar, eles aprenderam nas universidades a procriar um tipo de excitação que resiste aos ansiolíticos mais fortes. Uma boa parte da formação teve e tem ainda como base a leitura de textos medievais em que as batalhas eram descritas com o justo exagero (os taxistas mais velhotes que detestam a uber chamam-lhe “hipérboles”).
Alguns exemplos: “Haverá entre eles uma grande batalha, daí que o sangue chegará até à porta do moinho”, “…e farão uma grande batalha, de tal maneira que o cavalo branco não será reconhecido, devido ao sangue que se derramará entre eles…” ou ainda “E será tão grande e tanto o sangue que se derramará perto da fonte do ferro, que chegará até às cinturas dos cavalos, o que será penoso de ver”(2).
Nas pós-graduações, depois de longo estágio nas futeboladas, a excitação é treinada com descidas a pique pela Boca do Inferno em que o mestrando se agarra à albarda de um burro sem usar luvas, pois o mesmo fizeram Fernando Pessoa e Aleister Crowley sem nada dizerem a ninguém. E o resultado, aliás brilhante, ficou para a história com H grande. Exemplos como este conduzem os futuros locutores (variante pás-de-moinho-em-tempo-de-tufão) a compreenderem quão mística é a aprendizagem de um conceito como o de “tempo real”.
Geralmente é já na dissertação final que esta divindade da comunicação contemporânea – o “tempo real” – é desvelada. ‘Chegados aos finalmentes’, logo a seguir às praxes, repetem em uníssono o juramento de Hermes que preconiza que o atrito espácio-temporal próprio da matéria abrirá um dia as portas à televiagem: a trasladação imaterial para qualquer sítio em tempo real. Ou seja: passar da velocidade da notícia à instantaneidade pura, questão obviamente adâmica para os nervos mais espevitados. Enquanto tal não acontece, os novos repórteres exercitam esse salto ainda improvável e, por isso, face a furacões como o Leslie, deixam a voz entrar em estado (aristotélico) de choque e permitem ao corpo que se desmembre num sururu instantâneo.
Os espectadores adoram, as audiências disparam e a catarse entumesce os espíritos. Mais cedo ou mais tarde, aparecerão ao lado da irmã do Ronaldo a matutar rajadas numa dessas revistas celestiais que todos conhecemos. E o personal coach gritar-lhes-á na curva do antigo Mónaco: “flecte, insiste. Flecte, insiste. Flecte, insiste”. Mnemósine, filha do céu e da terra, guardiã da memória e mãe de todas as musas (que sabem, há muito, que os furacões não fazem sexo por amor), não teria feito melhor.
1. Da Alma (De Anima), Org., introdução e tradução: Humberto Gomes, Carlos; Edições 70, Lisboa, 2001, p,76
2. Sánchez Alvarez, Mercedes, El Manuscrito misceláneo 774 de la Biblioteca Nacional de París, Gredos, Madrid, 1982 (fólios citados: 284r/284v, 285r/285v e 300r).