Histórias com H é uma rubrica onde relatamos as mais belas histórias do desporto mundial. O episódio desta semana fala sobre um lendário clube inglês – o Bury FC.
O início da nova temporada desportiva significou a extinção de um dos clubes mais antigos de Inglaterra e do mundo. O começo e o final, separados por mais de 100 anos de história, simbolizam um pouco do corpo e alma de um país que vive de e para o futebol. E aqui, n’O Desportista, não poderíamos deixar passar um evento destes sem congeminar uma pequena homenagem àquilo que foi – e que para muitos continuará a ser – um bastião contra o movimento imparável e faminto do futebol moderno.
Um fim já há muito tempo anunciado
Poder-se-á dizer que o mundo do futebol está de luto. O Bury FC, clube mítico do futebol inglês, fechou as portas. A razão deve-se ao incumprimento dos pagamentos de dívidas que se foram amontoando, ano após ano. Desta vez, a esperança, a que se mantém até ao final, ainda deu um ar da sua graça, aparecendo sob a forma de uma última e improvável hipótese de o clube, da região de Manchester, ser comprado pela C&N Sporting Risk, e com ele também as suas dívidas. Mas os minutos passaram, os últimos do Bury enquanto clube de futebol.
Seguiu-se a oficialização da expulsão do clube da English Football League (EFL) e um adeus chorado pelos seus fiéis sócios e simpatizantes, que foi compartilhado por outro clube afetado por problemas semelhantes e que encontrou no Bury uma amizade construída pelo momento que ambos passavam – o Bolton Wanderers (rival da mesma zona que o Bury), que se salvou antes do “apito final”, sendo comprado pela empresa Football Ventures Limited.
Sortes distintas, mas que mostram que, mesmo com a expulsão do clube da League One, é possível que melhores tempos estejam ainda por vir.
História no futebol britânico
Os “Shakers”, como são carinhosamente apelidados, nasceram em 1885, na região de Manchester. O seu estádio, Gigg Lane, é um dos mais antigos do futebol mundial. Passaram maior parte da sua história entre as quatro principais divisões do futebol inglês, colecionando alguns títulos de campeão e de vice-campeão, além de um histórico 4º lugar na principal divisão inglesa, em 1926. Mas o seu maior troféu, e que catapultou o modesto Bury para um patamar de eleição dos clubes ingleses, é a taça de Inglaterra. Vencedores por duas vezes, em 1900 e 1903, contra Southampton e Derby County, o clube de grande Manchester construiu uma base sólida no futebol em terras de sua majestade, passando para um grupo de elite dos vencedores de um dos maiores e mais prestigiados troféus do futebol mundial. Foi um início de século demolidor para o Bury, e que simbolizam os anos de ouro do clube. Estes anos, apesar de tudo, mantiveram-se intocáveis, sem existir nenhum título adicional que sequer se compare ao prestígio da FA Cup, mas a história ficou e consagrou um dos clubes fundadores do futebol inglês, um clube premiado.
Os últimos anos do clube foram infernais. Com os encargos a acumularem-se, a manutenção do bom funcionamento do clube tornou-se numa missão quase impossível. Com esse peso adicional, a temporada passada do clube foi, no seu geral, boa, tendo subido à League One, juntamente com Lincoln City e MK Dons. Mas com a dúvida a pairar no ar – se algum comprador dava um passo em frente para salvar os “Shakers” do pior dos destinos –, o tempo foi-se esgotando e o Bury impedido de entrar em campo nas primeiras jornadas do campeonato, afundando cada vez mais as aspirações do clube recém-promovido.
Ainda um bastião contra o futebol moderno
Existem ainda, nas camadas mais profundas do futebol inglês, alguns redutos que mantêm o espírito de um futebol do povo e para o povo. Afetado pela criação da Premier League nos anos ’90, a modernização e capitalização do desporto-rei tomou conta dos principais estádios do futebol inglês e transformou em negócio aquilo que era muito mais paixão e sentimento. Ainda que o futebol no seu geral tenha mudado, as ligas inferiores do futebol inglês e alguns dos seus clubes mantiveram tradições que, por serem insignificantes para quem comanda e movimenta os milhões da Premier League, conservaram o sentimento. O Bury FC era um deles, tal como é o Bolton ou o Leeds. Mas, infelizmente, nenhum clube profissional consegue escapar a gestões ruinosas, levadas a cabo por donos a quem o futebol pouco ou nada interessa e que veem os clubes que detêm como possíveis máquinas de lucro ou lavagens de dinheiro. O verdadeiro futebol está a morrer, pouco a pouco, e mesmo à frente dos nossos olhos.
Nos dias que antecederam a extinção do Bury, centenas de voluntários acorreram ao Gigg Lane. Por lá passaram durante horas adeptos de vários clubes, inclusive adeptos de um dos maiores rivais do Bury, o Bolton. Lá foram para exemplificar o amor ao desporto, limpando e tratando com imenso carinho todos os cantos e recantos do velhinho estádio, na esperança de que o clube ainda existisse para jogar o próximo jogo do campeonato. Ali ficaram horas e horas, até depois do prazo de venda ter acabado, chorando a morte de um familiar, um de que muito gostavam.
É esta a alma do futebol. E é isto que clubes como o Bury oferecem, e que hoje em dia pouco ou nada é valorizado. São fortalezas comunitárias.
Não foi um adeus Bury FC, é só um até já!