Toda a vila se deixou cercar por arranha-céus, hematomas que rasgam as paisagens húmidas atravessadas pelo grande aqueduto. Na montra da praça, há um Cristo deitado de barriga para o ar que se mostra particularmente atento às prateleiras de cima onde as bonecas surgem alinhadas com folhos brancos, chapéus de chita e os lábios muito marcados em tons de vermelho vivo. A homeostase perfeita para uma vila com o nome de Belas.
O taxista continua no seu posto sentado ao volante. Olha vagamente para as portadas azuis da casa de saúde ou para o avarandado do café. Por vezes, vira a cabeça na direcção do parque infantil que continua deserto. O locutor da rádio garante que a mudança de dígito irá dar origem, dentro de dias, a um crash global. Este Millenium Bug, tal como o designa, já foi tratado por uma revista americana com o título “banho de sangue”. O medo não tem paisagem, é um buraco onde o teatro de sombras encena as peças mais improváveis com algum selo de verdade. O taxista viu crescer o seu próprio teatro ao rubro, a ponto de se imaginar a arder numa vala comum. O dia não promete bonança, pensou. Foi quando o telefone da praça tocou e o carro partiu para mais uma breve viagem.
O tempo dos clientes é um tempo proscrito. Voa como quem esvazia um balão que não pára de crescer. Até que o automóvel acaba por chamar a si as atenções e a estação de serviço interrompe todas as caminhadas. O taxista propõe-se encher o depósito como sempre, mas, desta vez, vê andar na sua direcção uma mulher de abas largas. Por trás das lentes grossas dos óculos que ostentam aros de chifre, os olhos desmaiam tons marinhos, à medida que a voz cresce naquele afã dos foguetes de arraial que falham na subida.
A mulher parece ter ressuscitado no momento em que encarou de frente o taxista que mantém ainda na mão o tubo negro por onde escorre o gasóleo. Jura que o conhece há muito tempo e repete-o com um ar ao mesmo tempo vitorioso e furioso. O taxista não tem sequer tempo para insistir que se deverá tratar de um engano. Indiferente, ela continua a jorrar palavras e lembra o clima tropical, as azáfamas debaixo do calor, aquilo era outro mundo, não era?
Lembro-me de o ver todas as manhãs com camisa branca a distribuir envelopes porta a porta. Por vezes parava e olhava para cima como se uma nuvem apenas feita para si lhe tivesse sido prometida. Nunca me passou pela cabeça investigar qual seria o seu emprego, mas cruzava-me sempre consigo na mesma estrada de terra batida, aquela terra barrenta cheia de sapos, lembra-se?
O taxista enche o depósito e continua com a longa mangueira na mão, incomodado por ter que interromper os seus habituais gestos mecânicos. À sua frente, a mulher devora as palavras e o relato torna-se de repente tão bizarro como a própria situação em que decorre. Poucas vezes o encontrava durante a tarde, mas havia aquele café entre os coqueiros do vale, isso mesmo, o Majestoso, onde o via por vezes com uma cerveja morna pela frente e o bloco-notas que ia enchendo entre um ou outro olhar na direcção da esplanada. Sempre o achei um solitário. Mas, minha senhora, eu nunca saí daqui da minha terra, está enganada com a pessoa, não sou eu certamente.
É o senhor, sim, eu não me costumo confundir. Nunca. Houve uma altura em que comecei a ter sonhos estranhos consigo, tenho que lho dizer. Via-o a bater à porta da minha casa com as palmas das mãos cheias de cavalos marinhos. Via-o a atravessar-se-me em frente como se levitasse diante da sacada do meu quarto. Via-o a contar-me que já vivera várias vidas, cada uma delas em seu continente e sempre, sempre com um fim trágico, terrível. E numa dessas vidas tinha sido taxista. Não me diga que não! Abruptamente, a mulher como que crepita em estado de pânico. O silvo da voz acende-lhe o rosto. Sua de ponta a ponta com os braços arqueados no ar, cabelos desordenados, o olhar em vaga a bulir com a pontaria de um lança-chamas.
O taxista, inquieto, tenta dar a cena por terminada, dirigindo-se com passo acelerado na direcção da caixa de pagamento. Gestos rápidos de ciclope. À volta, um pequeno grupo de pessoas junta-se em semi-círculo para bisbilhotar o inesperado turbilhão. A mulher grita, irada. A tarde sai das suas raízes como um relâmpago a alçar o piso molhado e escorregadio, por causa das nuvens rápidas e das manchas de óleo. O táxi parte com os pneus de trás a derraparem, enquanto a mulher, impassível, continua a vociferar, a bradar, deambulando entre as bombas de gasolina com o coração, distante do corpo e de tudo, a ribombar. Cada paisagem é uma fuga na direcção do animal que por dentro atiça a sua própria tempestade.
Noite caída. O taxista entra em casa, um modesto cruzamento de duas assoalhadas. Olha obstinadamente para o relógio, abre a televisão e o pequeno móvel do bar, levanta a cortina do aquário e contempla o movimento dos cavalos marinhos. No telejornal fala-se do Millenium Bug, mas o taxista não é capaz de pôr de lado a imagem de Cristo deitado de costas a espiar as bonecas que o lojista carregou de batom vermelho. Com o indicador, levanta a manga da camisa e torna a fitar o relógio, impaciente. Desdobra um dos jornais da semana passada, ao mesmo tempo que assobia a tónica dos acossados que desconhecem o que é descansar ao fim do dia. Olha mais uma e outra vez para o relógio até que batem finalmente à porta. É ela.
A mulher entra em silêncio. É o taxista quem reabre a sorvedouro. Ela acede de imediato, sentando-se na mesa de apoio com as pernas muito brancas a espantar os relances da casa: Ah sim, se me lembro de o ver, manhã atrás de manhã, com a camisa branca toda aberta a entregar os envelopes nas caixas de correio do pobre bairro. Desculpe, minha senhora, está mesmo enganada eu não sou essa pessoa. Ai é, é! Tantas vezes que o segui até ao Majestoso com um desejo enorme de tentar perceber o que escrevinhava nesse bloco-notas de capa azulada. Mas eu nunca… e não foi só isso, a partir de certa altura, via-o em sonhos a ameaçar-me com os seus cavalos marinhos, via-o diante da minha janela deitado sobre um tapete aos quadrados, enfim, via-o a contar-me as suas várias vidas e em todas elas eu e o senhor éramos levados a arder para mesma vala comum. Ah!
Belas anoitece cercada por arranha-céus, hematomas que rasgam os medos em fuga como se cada novo aqueduto fosse um animal gigante a atiçar a sua própria intempérie.