Éconhecido o apego romântico pelas ruínas que fez escola a partir do primeiro terço do século XVIII. Houve na época – e um pouco mais tarde – quem sacralizasse e até quem forjasse ruínas. William Gilpin (1724-1804), amante deste tipo de poética, chegou a propor a destruição parcial de algumas villas de Palladio para que o gozo do “laconismo do génio” se tornasse possível. No final desse século, o círculo dos românticos de Jena, nomeadamente Schlegel e Novalis, também não escondeu a paixão por uma estética do inacabado. Este último traduziu o encanto pelo escorço através da fórmula: “devolver ao finito uma aparência infinita”.
Nestes casos de admiração pelo não acabado, pelo informe e pelo puro fragmento está em causa aquilo que, de modos muito diversos, Freud e Agamben viriam a designar por fetichismo, ou seja, a substituição de um todo (de um corpo) por algo que o representasse com o intuito de o tornar presente e, ao mesmo tempo, de o ofuscar (em Delfos, vinte e tal séculos antes, o oráculo não fazia outra coisa). O fetichismo faz parte da fantasia com que se imagina um vaivém regular entre um objecto que se deseja e um (efabulado e bem tratado) objecto interposto que o prefigura. A publicidade, sobretudo depois dos anos cinquenta, aprendeu e interiorizou muito bem esta lição (percebendo que as ruínas também implicam a consciência de um tempo que é humano e que, portanto, não nos cai de cima, desamparado, vindo de uma qualquer graça divina).
Em 1765, o pintor Hubert Robert regressou a Paris, após uma estadia em Roma – tinha então pouco mais de trinta anos -, e viu-se subitamente recebido em festa. Os seus arcos de triunfo cobertos de ervas daninhas e os seus pórticos desabados mereceram grande aplauso. Diderot, que foi pioneiro no que se viria a chamar ‘crítica de arte’ (ao escrever sobre os Salões do Louvre), foi um dos entusiastas de Robert, tendo considerado que os seus quadros suscitavam um estranho efeito de “doce melancolia”: “Viramo-nos para nós próprios, antecipamos os efeitos da passagem do tempo… e eis assim consagrada a poética das ruínas”.
Congelemos as palavras de Diderot e reatemos a conta-corrente do nosso tempo: a humanidade ‘despeja’ todos os dias na rede um número incalculável de palavras, grafos, algarismos, pasmos, idiotias, seja o que for, enfim, que advenha do acto de teclar (e de outros tipos de inscrição que nos são familiares). Dessa quantidade de material pouco sobra ou tem utilidade uns dias depois. O que se actualiza, quase logo se desactualiza. O mais curioso é que a cultura da rede só dá realce – e em jeito de compulsão – ao ‘agora’. O que implica que se está a formar no planeta um arquivo morto, ou, se se preferir, uma imensa amálgama de ruínas. Gilpin e Robert dariam saltos de gáudio por cima das fogueiras de Santo António.
É possível que um ‘renascer’ da antiga tradição da poética das ruínas venha, um dia, a revelar o âmago da época em que vivemos, pois parte dela é diariamente submergida e raramente sujeita a uma reciclagem, digamos, definitiva. Talvez o teor desta futura arqueologia venha a conhecer ressonâncias parecidas com o teor dos plásticos que devoram oceanos e que estão hoje a ameaçar as espécies marinhas. De qualquer modo, o papel das ruínas sempre foi o de pressagiar a catástrofe, enquanto parte intrínseca do fôlego moderno. Mesmo quando elas são invisíveis e aparentemente pouco ruidosas, como é o caso dos destroços, dos resíduos e de todo o tipo de restos (mais ou menos) mortais que são gerados pela rede.