Faça chuva ou faça sol (e fez mesmo!), dormem à porta do coliseu de Lisboa durante três dias. São raparigas e sentem o poder das hormonas como nenhum outro grupo de adolescentes e adultos. Podia ser uma romaria para pagar uma promessa, mas é Niall Horan que volta a Portugal, desta vez a solo, despertando a legião de fãs adormecida dos One Direction.
São 6:53h da manhã no coração de Lisboa. Ao virar na Rua Condes, que dá acesso ao Coliseu dos Recreios, um batalhão de raparigas está alinhado numa mesma direção. Há raparigas a perder de vista e, quanto mais se anda, mais corpos se veem.
As primeiras da fila estão enfiadas em sacos de cama. Há tantas pessoas debaixo dos mesmos cobertores que é difícil saber onde colocar o pé. À medida que a fila avança, a quantidade de mochilas e sacos diminui, mas os sorrisos aumentam. Estão cá há pouco tempo, frescas e prontas para o dia que esperam desde setembro, quando receberam a notícia de que o seu ídolo, Niall Horan dos One Direction, voltaria a Portugal, desta vez a solo.
“Isto é uma doença saudável, não incomodamos ninguém”
A dormir nos degraus da entrada estão cinco amigas. São as primeiras da fila e estão todas debaixo das mesmas mantas. Duas delas sorriem e ajeitam-se no emaranhado de pernas que não as deixa dormir. Shemin Moti e Cláudia Nogueira estão cansadas e dizem que não dormiram bem. No entanto, nem sempre foi assim, Shemin tem 20 anos, é de Lisboa e conta: “A primeira noite foi bastante divertida, dormir no chão nem tanto, mas vale a pena. As pessoas estão todas em stress e eu não tenho que me preocupar porque já cá estou.” Sobre estar a dormir na rua à espera de um concerto, diz de forma muito séria: “Isto é uma doença saudável, não incomodamos ninguém e deixa-nos felizes. O ambiente é superdivertido… há confusões, mas é divertido.”
Vânia tem 17 anos e também é de Lisboa. Espreita para fora do saco de cama e comenta, a rir, a reação da avó que lhe ligou todos os dias porque não percebia o que se estava a passar. “A minha avó ligou-me na quinta-feira a perguntar onde é que eu estava. Respondi-lhe que estava à porta do Coliseu. Sexta-feira, tivemos exatamente a mesma conversa e ela ficou confusa. Confirmei-lhe que o concerto era só sábado. Quando ela percebeu, perguntou-me se eu estava maluca, que só a deixava preocupada. Perguntava-me o que é que comia e bebia… como é que me tapava.”
Quanto mais tempo passa mais raparigas aparecem e surgem objetos que são verdadeiras odes de amor: Mochilas com as caras dos ídolos estampadas, ténis escritos com dedicatórias e promessas de paixão eterna. Uma ou outra rapariga exibe um passe VIP à volta do pescoço. Essas merecem um segundo olhar, afinal de contas não precisaram de dormir cá fora para conseguir algo que a esmagadora maioria não vai conseguir: falar com Niall.
Ao avançar pela fila que aumentou drasticamente desde as 7:00h da manhã, as caras de preocupação começam a surgir. As primeiras da fila agarram numa caneta e começam a escrever números de chegada nas mãos dos novos membros do cordão humano que se forma. Aqui ninguém vai passar à frente.
“Eu não gostava dos One Direction”
Inês de Castro tem 18 anos e vem do Barreiro. “Os meus pais acham normal, deixaram-me dormir no concerto da Ariana Grande o ano passado.” Para surpresa de mais duas raparigas que estão mais à frente, Alexandra, de 19, que veio com Inês, interfere e diz: “Eu não gostava dos One Direction, acho o trabalho deles individual muito melhor do que enquanto grupo.” Uma opinião que choca, mas que se vê repetida por alguns acenares afirmativos.
Por volta das 11:30h já seis pessoas partilham os mesmos metros quadrados de chão. Ainda há mais para chegar e o nervosismo aperta. As que já chegaram têm medo que as amigas que estão por vir sejam expulsas para o fim da fila. Por volta do meio dia, algumas raparigas decidem ver até onde vai a fila. Voltam com sorrisos nervosos e jubilantes. “Não estamos assim tão atrás, a fila já dá a volta e sobe pelo menos quatro quarteirões.” Neste momento, os números que têm na mão tornam-se especiais e tentam torná-los permanentes com a ajuda de canetas. Esta é a garantia de que ficam tão perto quanto possível.
Pelas 14:43h, o sol é exigente e extenuante. Escondem-se cabeças debaixo de casacos e garrafas de água nos parapeitos das montras à sombra. Um comerciante engraça com a multidão nova que se move em frente da sua loja. “Chicas que tal?”, pergunta, enquanto faz o toldo avançar e proteger as “peregrinas” movidas pela fé de serem as primeiras.
Ouve-se um agradecimento coletivo e começa a primeira cantoria do dia. São um coro afinado que começou à porta do Coliseu e agora percorre as ruas repletas de gente cheia de ansiedade. “Slow hands”, gritam quando chegam ao clímax da música. Niall não parece tão exigente quando chega perto das 15:00h ao local e desaparece tão depressa como apareceu. Isto gera um corrupio: algumas ficam calmamente para trás a tomar conta das mochilas, enquanto outras correm em direção às portas do Coliseu. Quando voltam têm o desapontamento espelhado na cara, não o viram. A tarde passa lentamente, reclama-se da água que aqueceu ao sol e da chuva que caiu no entretanto indeciso da meteorologia. Toda a gente se anima e começa mais uma vez o concerto improvisado no qual estas raparigas se tornaram especialistas ao longo do dia. Por volta das 16:00h, dá-se a primeira baixa neste exército. Uma rapariga é levada para uma ambulância. Segredam-se motivos e rumores de pais irresponsáveis que deixaram a menor de 15 anos vir sozinha do Porto. Tenta-se voltar à cantoria, mas nem isso salva o péssimo humor e cansaço de quem já não se levanta do chão quando a fila anda.
Às 18:20h, a fila transforma-se. O que antes era um conjunto heterogéneo de pessoas deitadas e sentadas torna-se uma compressão de mãos dadas e pulinhos de alegria. Estão tão perto que imaginam Niall em todas as janelas do Coliseu. Cada movimento de cortina é um incentivo a um grito de guerra. Estão prontas, empunham bilhetes como bandeiras de vitória. Catorze horas de espera refletem-se num abandono total das raízes que criaram durante o dia umas com as outras. Perdem-se das companheiras e correm tão depressa que tropeçam nas escadas. Quando finalmente entram, tentam tal como numa batalha perceber a melhor zona para se posicionarem. A sala compõe-se e procuram as companheiras perdidas durante o embate da entrada. Estendem-se braços e ligam-se lanternas.
A primeira convidada da noite é Julia Michaels. A cantora pop que aquece as vozes da multidão com músicas bem conhecidas da rádio. Escreveu letras para Justin Bieber e Selena Gomez e é com esses singles que pede às miúdas que liguem as luzes dos telemóveis. Canta um tema original seu, Jump e pela primeira vez o público sossega. Quando Julia grita “Saltem” e todos o fazem o chão move-se. Então, param a sentir o movimento e riem enquanto cantam e saltam com ainda mais força.
É a sua última noite a abrir a tour de Niall. As lágrimas pela primeira vez, não partem do público, mas sim da intérprete. Despede-se não sem antes pedir para filmar o público: está encantada com o mar de pessoas que tem à frente e não pára de sorrir. Agradece a Niall pela oportunidade e sai pelo lado direito do palco.
Durante mais de 15 minutos, o cenário é decorado com tapetes persas que originam um ambiente intimista e caloroso. Qualquer movimento origina uma expetativa muito semelhante a uma montanha russa. É ele e a seguir já não é. Pessoas que estavam na sexta fila são empurradas para a terceira. A ansiedade cresce.
“Se estão a viver o momento através das lentes, estão a fazê-lo da forma errada”
Pelas 21:42h, com 12 minutos de atraso e de guitarra colada ao corpo, Niall surge com calças cinzentas e t-shirt branca. Sorri e dedilha os primeiros acordes de On the Loose que se revela a dose de energia necessária para este público cansado do longo dia.
Niall salta para o tom nostálgico, lento e calmo que compõe a maioria das canções do álbum Flicker, com This Town, o seu primeiro single a solo, o que faz com que uma grande maioria do público comece a comprimir as glândulas lacrimais. Rimel e eyeliner que escorrem negros pelas bochechas coradas de quem chora e tenta cantar a plenos pulmões. Niall não é propriamente um cantor exímio e isso reflete-se no tom mais baixo que alcança quando as notas mais altas do original chegam e tem de as imitar sem ajuda.
Mas ninguém liga porque todos estão ligados a outra coisa. Estendem as mãos para o palco como se estivessem mesmo à frente dele. É uma ilusão bonita que as faz gritar cada vez mais alto.
Tudo acalma quando as primeiras notas de Dancing in the Dark, de Bruce Springsteen, enchem o ar. Isso parece despistar o público, mas promover algum alívio aos pais perdidos. Finalmente, alguma coisa que lhes é familiar.
Durante a maioria das músicas, Niall mantém-se concentrado no que faz. Quando chega a vez de tocar Flicker pede que baixem os telemóveis: “Sem querer pedir muito, gostava que guardassem os vossos telemóveis… Esta música é especial para mim e se estão a viver o momento através das lentes, estão a fazê-lo da forma errada.”
Apesar do pequeno “sermão”, Niall está feliz. Sorri e brinca com os seus músicos, faz trocadilhos engraçados com letras de canções, que salpica com notas desconexas na guitarra, causando momentos de humor e descontração.
Ao contrário de muitos artistas que o acompanham nas tabelas da Rolling Stone e Billboard, não se limita a “despejar” o reportório a que se comprometeu. Ou a fingir que canta. Cada música pede uma guitarra diferente e um ajuste especial, incluindo quando se senta ao piano. Um pouco desconfortável, limpa as mãos nas calças. “Não costumo compor ao piano …mas escrevi esta letra que nunca cheguei a colocar no álbum. Se a tiverem ouvido na internet cantem, senão…não cantem”, diz em tom de brincadeira, talvez para sacudir os nervos do corpo.
No final, quando a temperatura do ambiente não pode subir mais e os corpos suados imploram por algum ar fresco, notas conhecidas de todos ecoam no ar. Drag Me Down, o último single dos One Direction sai-lhe do peito com tanta força que só não supera as vozes das 4300 pessoas que se sentem completamente rendidas à nostalgia dos anos passados a admirar a boysband.
“Catorze euros por um par de meias com riscos azuis?”
No final, Niall faz questão de deixar suspense no ar com um “até à próxima, Lisboa”. E desaparece tão calmamente como entrou. As fãs gritam e correm para fora do recinto, saltam à volta de adultos com caras cansadas, pedem dinheiro para comprar meias, camisolas e porta-chaves. Ouve-se um pai desesperado “Catorze euros por um par de meias com riscos azuis?” O escândalo não apaga a eletricidade do corpo da filha que pede “por favorzinho”, como se o diminutivo da frase “por favor” fosse minimizar o esquartejamento da carteira do progenitor, que acaba por tirar uma nota azul da carteira.
Há grupos sentados na calçada, sorrisos de êxtase e partes do corpo que não mexem. Mais de metade das raparigas tem as bochechas molhadas e não porque algum rapaz lhes partiu o coração. Desta vez, a escolha de chorar por alguém… foi delas.