Começou por ser um terreno baldio, situado numa encosta entre a Damaia e a Buraca. Rapidamente passou a “Cova da Moura”. Hoje, o nome ainda é sinónimo de bairro problemático de Lisboa, mas o Projeto Sabura veio mostrar que nem tudo é o que parece.
São 10:00h da manhã e o sol já se sente quente nestes primeiros dias de primavera. Na Cova da Moura, ainda está tudo calmo. O pouco barulho que se ouve é de crianças a brincar no jardim da creche do Moinho da Juventude, que fica mesmo na entrada sul do bairro. Ao entrar mais para dentro, descobrem-se pequenos grupos de mulheres em círculo, sentadas em bancos de madeira a descascar batatas, cebolas, feijão-verde. Outras começam a montar as suas bancas para vender fruta ou peixe.
O ponto de encontro é o GIP, Gabinete de Inserção Profissional. Aqui está Paulino Semedo, um dos mais recentes colaboradores do Moinho da Juventude. Rapidamente se apresenta e explica que ” hoje a visita vai ser feita a cinco estudantes belgas. Como não sabem o caminho, vamos buscá-los à Estação da Damaia”. Quem sempre aqui morou não se perde, mas para quem é de fora é como se estivesse num labirinto, mesmo com as ruas todas identificadas. “Venham por aqui, vão conhecer o caminho mais rápido do GIP até a estação que só alguns moradores conhecem”, diz Paulino, enquanto segue à frente a indicar o caminho. Apesar de as ruas serem abertas e espaçosas, algumas são mais estreitas e outras têm pequenos degraus, o que torna por vezes o acesso mais difícil.
De volta ao GIP, já com os cinco estudantes belgas, Paulino conta um pouco deste projeto. “O Projeto Sabura começou há cerca de dez anos e foi uma das iniciativas da Associação Moinho da Juventude. Uma das ideias principais destas visitas é mostrar o outro lado do bairro, o oposto do que as pessoas pensam. A imagem que passam lá para fora nem sempre é boa, muito por causa da comunicação social que se foca apenas nas coisas negativas, e nós queremos desmistificar essa ideia”, explica.
“Nestas visitas, tentamos mostrar pontos estratégicos do bairro e contar um pouco a sua história. Mostramos ainda todas as valências que o Moinho da Juventude tem dentro do bairro, como a creche, por exemplo. Não vamos a todos os sítios, porque há alguns que não são tão interessantes para os visitantes”, acrescenta Paulino. Por isso é que cada visita demora em média cerca de duas horas e meia, sendo que pode demorar mais, podendo mesmo “chegar a um dia inteiro”.
O nome Sabura tem tudo a ver com este projeto: é uma expressão crioula que significa “tudo o que é bom, tudo o que é gostoso, é para mostrar que há algo bom, que te faz bem”. O número de visitas tem vindo sempre a aumentar desde o arranque do projeto, chegando a ultrapassar os dois mil visitantes por ano. “Só este mês, já recebemos mais de 200 pessoas e ainda vamos receber um grupo de japoneses que está a fazer uma viagem pela Europa e vem de propósito aqui para conhecer o bairro.”
Onde se estuda na Cova da Moura
biblioteca e o centro de documentação foram outros dos investimentos feitos pelo Moinho da Juventude. Ajudam a apoiar e a incentivar os jovens a estudar. O corredor que dá para a sala onde se encontram os livros tem, de um lado e do outro da parede, fotografias a preto e branco de moradores da Cova da Moura: todas mostram rostos de felicidade.Na primeira sala há livros escolares, do primeiro ano ao 12º ano, livros académicos divididos por áreas como Política, Economia, Saúde ou Direito. Ao pé da janela, uma maqueta do bairro. “Isto foi feito por jovens adultos que estão a tentar integrar-se na sociedade e não têm o incentivo necessário nem apoio para tal. É bom fazerem estes projetos que são reconhecidos e vão aumentado a sua autoestima, e isso já é uma ajuda”, afirma Paulino.
Jakilson Pereira, de 31 anos, é o responsável pela biblioteca há cinco. Para além disso, também é responsável pelo balcão de cidadão, que ajuda as pessoas a pedir documentação, a validá-la e a comprovar a sua veracidade. “Temos muita gente que vem aqui requisitar livros, sendo que a altura em que vem mais gente é na época dos exames nacionais”, explica Jakilson. Qualquer pessoa pode vir aqui requisitar livros, basta ter “o cartão da biblioteca e ser sócio”.
Quanto ao papel da biblioteca no bairro, para Jakilson é evidente. Cresceu e morou no bairro, e só recentemente é que comprou casa noutro sítio. Diz que uma das mudanças mais significativas que houve foi a nível da escolaridade. “Hoje temos aqui pessoas com doutoramentos e mestrados. Não quer dizer que agora seja tudo às mil maravilhas, mas mudou e muitas pessoas estão licenciadas”, afirma.
Tal como Paulino, diz que, “muito devido ao que aparece nos jornais e passa na televisão, as pessoas ficam apenas com a ideia má do bairro, isso depois é generalizado. É assim, aqui não é o sítio das mil maravilhas, mas também não é aquilo que mostram”.
Os “vigilantes”
Na Associação Moinho da Juventude, a maior parte dos colaboradores são jovens adultos que funcionam como um só. “Nós aqui trabalhamos em grupo e temos de ser versáteis. Estamos sobrecarregados e temos de nos ajudar uns aos outros. Basta um falhar e afeta todo o sistema e dinâmica”, explica Paulino.
Paulino sempre viveu no bairro. Por sorte e influência da mãe e da professora, nunca seguiu por maus caminhos. Licenciou-se em Engenharia de Gestão Industrial e tem a sua própria empresa. Mas nunca quis deixar de dar o seu contributo para ajudar outros jovens do bairro. Há cerca de um ano trabalha no GIP e dá aulas aos mais novos. “Sou professor de Jiu-Jitsu, dou aulas a crianças e a jovens, e eles têm em mim um modelo e é isso que é importante: é eles terem alguém para seguir, que não sejam aqueles que os levam por maus caminhos.”
Conta ainda que, geralmente, todos os jovens seguem o mesmo padrão quando algo não está bem e que, muitas vezes, são os colaboradores que passam mais tempo com eles que conseguem rapidamente identificar estes sinais. “Uma vez que se consiga identificar esse padrão que foge do comportamento normal, sabes automaticamente que aquele jovem tem problemas ou já se envolveu em atividades erradas, com as pessoas erradas. Nós vemos nisso na maneira de falar e andar, com o peito mais inchado. Vemos um jovem que antigamente não se vestia muito bem e agora começa a andar com roupa de marca, com pulseiras e correntes de ouro, e percebe-se logo que algo se passa”, explica.
Por vezes, não é fácil ajudar estes jovens a sair destas situações e há mesmo casos mais complicados em que os colaboradores não conseguem fazer nada. Como, muitas vezes, são os primeiros a identificar este padrão, o que fazem é “tentar consciencializar o jovem que aquele caminho não é o correto, que os bens materiais não duram para sempre e que não vai ganhar nada com aquilo”. Os colaboradores passam também a ser “vigilantes”, fazendo um “trabalho constante no alerta para estas situações”.
O papel da música no bairro
Perto da hora de almoço, o bairro ganha outra vida. As pessoas na rua são cada vez mais, ouvem-se conversas, carros a passar e música, muita música. É como se de cada janela saísse uma canção diferente, dos cafés, dos carros que passam. Os estilos predominantes refletem a população do bairro: música africana, hip-hop e rap.
Por a música ter um papel tão importante na vida desta gente, fez todo o sentido a criação de um estúdio. Um grupo de jovens juntou-se e, mais uma vez com a ajuda do Moinho, conseguiu construir um estúdio profissional para compor e criar os seus “próprios sons”. Já tem quase dez anos e é um dos sítios mais requisitados da zona.“Há sempre muita gente aqui a tocar, temos muitos cantores aqui do bairro e outros de fora que vêm aqui gravar. Existe sempre um responsável por mexer nos equipamentos”, explica Paulino.
Pascoal é um dos rappers que, para além de ir gravar músicas, está também responsável pelo estúdio. Passa ali a maior parte do seu tempo, muito na tentativa de tirar os jovens da rua. Ao contrário de Paulino, teve um percurso de vida mais complicado, mas isso serviu-lhe de lição. Esteve preso sete anos, muito por culpa da “imaturidade que tinha na altura. Sabia o que era certo e errado, mas não tinha noção do perigo”.
Aquele local, antes de ser o estúdio, era chamado o “espaço jovem”, um local onde os jovens podiam “estar, lanchar, jogar snooker e desperdiçar tempo na rua”. Mas era apenas isso. Agora, vendo no que este espaço se tornou, Pascoal sente “uma certa magia. É gratificante vir aqui, sinto que o estúdio me chama e me recebe”. E é esse sentimento que tenta passar aos jovens que gostam de música, de escrever letras e de gravar sons. Dá-lhes todo o seu “apoio e incentivo para saírem da rua e da criminalidade”.
A Associação Cultural Moinho da Juventude tem tido um papel fundamental na organização do bairro. E o Projeto Sabura não se resume a visitas que mostram outra realidade da Cova da Moura: esconde as histórias de vida daqueles que colaboram para tornar o bairro um sítio melhor.