É com sacos de papel a voarem de um lado para o outro que centenas de crianças e jovens se divertem, enquanto desempacotam toneladas de alimentos doados à Campanha do Banco Alimentar Contra a Fome. A iniciativa, que se realiza duas vezes por ano, junta mais de 40 mil voluntários de diferentes idades, culturas, religiões ou convicções políticas para alcançar um único fim: ajudar quem mais precisa.
Com uma mão a controlar a mesa de mistura do estúdio improvisado da Rádio Autónoma (UAL), Carla Lino, 47 anos, anima a sede do Banco Alimentar, em Alcântara. Trabalha como técnica informática, mas é na rádio que deposita toda a paixão. Em cada campanha do Banco Alimentar Contra a Fome, é a ela que é confiada a missão de contagiar as equipas de diversão, enquanto recebem e organizam centenas de sacos doados nos supermercados. “O meu papel neste voluntariado é mais na rádio. Eu e os meus colegas tentamos dar apoio e, principalmente, animar as pessoas que estão aqui a trabalhar na sede, na receção de alimentos. Através da música, tentamos animar o ambiente e deixar as pessoas bem-dispostas e motivadas. Também fazemos entrevistas para realçar o papel que os voluntários estão a desempenhar na campanha”, explica.
São centenas de crianças, jovens e adultos que participam na receção de alimentos. Grupos de pessoas que veem no voluntariado, uma boa oportunidade para ajudar o próximo, ao mesmo tempo que convivem com os seus pares. Carla Lino descreve o que a move e o ambiente que se vive em cada campanha: “É uma causa que me toca porque ajuda muitas instituições que apoiam as famílias mais carenciadas. É também uma campanha de solidariedade que reúne pessoas com um espírito muito peculiar, de muita participação e emotividade. São jovens, adultos, crianças, pessoas mais velhas que já se conheceram aqui. Muitos até se casaram e tiveram filhos. Aqui dentro, é possível criar amizades e laços que duram toda uma vida.”
Com um colete amarelo e com símbolos de língua oriental a vermelho, Qiujia Chen participa como voluntária, em nome da Associação de Budismo de Lisboa. Tem 38 anos e, apesar de ser de origem chinesa, reside em Portugal há mais de 14 anos. É a terceira vez que participa na campanha. “Hoje, somos, mais ou menos, cem voluntários budistas. Muitos deles são famílias que trazem os filhos e amigos, mas a grande maioria pertence à nossa associação”, garante.
É ao ritmo da música da Rádio Autónoma (UAL) que as equipas de voluntários desempenham as diferentes tarefas que lhes são indicadas. Os mais novos, apesar de se divertirem a brincar com a montanha de sacos de papel que são atirados para uma das caixas, ajudam a organizar os alimentos que são transportados para a sede, em Alcântara. A grande maioria tem por hábito vir duas vezes por ano. Com alguma experiência, sabem separar os alimentos e organizar na secção alimentar correta. “Hoje, vieram cá muitas crianças acompanhadas pelos pais e, embora sejam muito pequenos, muitos já têm muita experiência como voluntários. Já sabem classificar a ordem dos alimentos, como a massa, o leite e as bolachas”, refere Qiujia Chen.
Motivados pela missão de alegrar o Natal de centenas de famílias portuguesas, os voluntários aproveitam para doar “mimos”. Qiujia Chen vive este momento com entusiasmo: “A nossa associação vem com o objetivo de poder ajudar crianças pobres e todas aquelas pessoas que mais precisam. E como estamos a entrar no período do Natal, sentimo-nos obrigados de contribuir ainda mais. Os nossos voluntários doaram muitos bens alimentares a pensar nas crianças, como bolachas, chocolates, leite.”
Uma missão com mais de 25 anos
É a 57ª Campanha que o Banco Alimentar Contra a Fome organizada para a recolha de alimentos. Todos os anos conta com a participação de milhares de pessoas. Este ano, a campanha conseguiu reunir mais de 40 mil voluntários espalhados de Norte a Sul do país. Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar há mais de 25 anos, revela quais são os principais papéis da instituição: “Em primeiro lugar, mobilizar voluntários e sensibilizar toda a comunidade para o facto de existirem carências alimentares graves, mesmo à nossa beira. Em segundo lugar, a luta contra o desperdício alimentar: essa é aquela que combatemos todos os dias, ao recuperar alimentos que são excedentes de produção da indústria da agricultura e dos mercados. Em terceiro lugar, diria que é restruturar a rede de solidariedade social. Quando entregamos os alimentos às instituições e trabalhamos em parceria com essas entidades, estamos a fazer com que fiquem mais fortes. Ao ficarem mais fortes, permite que ajudem mais e melhor os pobres.”
Numa época em que o quotidiano dos adolescentes é de tal forma preenchido com atividades escolares e extracurriculares, nem sempre é fácil incentivar jovens a fazer parte de ações de voluntariados. No entanto, a Campanha do Banco Alimentar movimenta um vasto número de voluntários. Isabel Jonet explica que “o fenómeno se deve à confiança que se estabeleceu entre os bancos alimentares de 21 pontos do país e a comunidade local. São muitos jovens que veem aqui uma boa oportunidade de contribuir. Hoje em dia, os jovens têm muitas solicitações, muitas redes sociais, jogos, amigos, saídas noturnas e atividades durante o dia, mas veem no Banco Alimentar uma boa oportunidade de empregar o seu tempo de forma útil. Têm consciência que, ao ajudarem a angariar comida, muitas refeições serão servidas na mesa das famílias que mais precisam. É por isso que procuramos fazer com que os jovens venham sempre em grupo. Assim, conseguem ter uma componente divertida e lúdica. Este voluntariado não é algo que os masse. É onde se sentem úteis”.
Com o objetivo de incutir valores universais como o da solidariedade, cidadania e partilha, a quem participa, a campanha também pretende alertar e consciencializar os portugueses para os problemas sociais que o país enfrenta. Portugal é um dos estados europeus com maior índice de risco de pobreza. De acordo com o INE (Instituto Nacional de Estatística), em 2017, 2,4 milhões de portugueses estavam em risco de pobreza e de exclusão social, o que corresponde a 18% da população. O fenómeno afeta, sobretudo, pessoas com mais de 65 anos. “Em Portugal, há um milhão de pessoas que vive com menos de 250 euros por mês. E há um quinto da população que não tem todas as refeições de que precisa. As pessoas nem sempre têm noção disso. Não faz parte da sua preocupação. No entanto, quando trabalham no Banco Alimentar, nem que seja só uma vez, têm consciência dessa realidade”, comenta a presidente do Banco Alimentar.
No meio de tantas toneladas de alimentos, torna-se impossível identificar quem são os doadores. Segundo a presidente do Banco Alimentar, “nesta campanha, as contribuições com alimentos são de todos. Muitas vezes, vemos como pessoas que são pobres e que até recebem ajuda do Banco Alimentar contribuem, nem que seja com um pacote de arroz ou uma lata de atum. É a forma como agradecem aquilo que lhes é dado. No entanto, vemos também pessoas que dão carros inteiros com alimentos. Temos conhecimento de pessoas que vão de propósito para o mercado para contribuir. Uma campanha como esta envolve mais de um milhão de sacos. São muitas as pessoas que ajudam. Não sei é se há mais ricos ou se há mais pobres a contribuir. Aquilo que sei é que há uma vontade transversal à sociedade de ajudar”. Em véspera de Natal, a última campanha está a superar, como refere Isabel Jonet, todas as expectativas: “Arrecadamos à volta de um milhão de quilos de alimentos. É uma coisa extraordinária. São quantidades tão elevadas que nos fazem, por vezes, perder a noção que um quilo de arroz foi dado por uma pessoa pobre com muito amor. Para mim, mais importante do que saber se são os mais privilegiados ou os menos privilegiados, é a certeza de que todos aqueles que podem contribuem.”
Sentido de solidariedade
Sentado à frente de um microfone, Miguel Bochi dá instruções a duas locutoras mais velhas, enquanto se preparam para dar início à sua emissão na Rádio Autónoma. Tem 12 anos e frequenta o 6º ano do ensino básico. Há quem acredite que a experiência não se dita pela idade de uma pessoa e Miguel Bochi prova-o. Sabe como se deve falar para a rádio, dando, também, indicações técnicas do funcionamento da mesa de mistura a uma das locutoras que irá controlar a emissão. “O meu papel no voluntariado é de ‘mini’ locutor e falo para a rádio. Não faço de convidado, já sou quase do staff que trabalha aqui. Gosto sempre de fazer parte da rádio. Divirto-me sempre imenso. Estamos entre amigos, sempre prontos para dizer palhaçadas”, confessa.
Além da recolha de alimentos do Banco Alimentar para a prevenção da pobreza, participar nesta campanha faz com que os jovens desenvolvam um espírito crítico e de solidariedade. “Não é a primeira vez que ajudo neste voluntariado. Venho com a minha mãe duas vezes por ano, desde os seis anos. É o único voluntariado em que participo. Acho que é importante ajudar quem mais precisa. É sempre um prazer vir cá”, admite. Na sede, são muitas as crianças e os jovens que participam com a companhia de familiares. “No final do dia, sinto que a missão foi cumprida. Para o próximo voluntariado, com certeza que cá estarei”, partilha Miguel Bochi.
É aos mais velhos que as pessoas se dirigem quando precisam de ajuda. Com o telemóvel sempre na mão, Helena Prata, 75 anos, atende as chamadas telefónicas para dar indicações àqueles que chama “chefes de equipa”. “Sou voluntária há muitos anos. Participo na Campanha do Banco Alimentar desde a sétima edição e já estamos na 53ª. Não vou dizer há quantos anos para não parecerem muitos”, conta. Ao longo do tempo, tem desempenhado diferentes funções como voluntária, acabando por conquistar a confiança da instituição. Atualmente, é responsável pela organização das equipas que trabalham como voluntários nos supermercados e pelo transporte dos alimentos doados. “Esta história do voluntariado é algo que se vive de forma intensa e natural. No meu caso, quando comecei a vir cá, duas vezes por ano, com ajuda dos meus filhos e mais tarde com a dos meus netos, passou a ser algo natural. Todos eles sabem que participo, duas vezes por ano, seja como responsável dos transportes ou como voluntária dos supermercados.”
O planeamento de uma iniciativa com a dimensão do Banco Alimentar requer disponibilidade de inúmeros voluntários que estejam comprometidos com a causa e se consigam desligar dos ponteiros do relógio. Helena Prata, voluntária há mais de 46 anos, descreve as fases desta sua rotina solidária: “Começámos a trabalhar as campanhas, mais ou menos, dois meses antes. Depois, estamos, pelo menos, mais dois meses a deixar tudo tratado e arrumado. O tempo passa tão depressa que, quando menos esperamos, já estamos na altura da recolha de alimentos.”O esforço é depois compensado pela satisfação de poder ajudar. “Acho que o sucesso destas campanhas se deve ao facto de não haver idades, partidos ou religiões. Cada um de nós faz parte de um todo. Esse todo envolve os que estão aqui, os que se encontram nos supermercados; as instituições que recebem e distribuem. Somos um grupo enorme.”
Sem esperar nada em troca, Helena Prata acredita que a melhor recompensa é conseguir arrancar um sorriso nas pessoas que vivem no meio da pobreza. É com esta missão que a voluntária pretende continuar a alimentar o espírito solidário que carateriza estas iniciativas: “Todos os momentos que qui vivi são marcantes. Aprendemos muito uns com os outros. No entanto, aquilo que mais me impressionou foi ver a disponibilidade e a vontade das pessoas que cá trabalham, um número reduzido de pessoas, de nos ajudarem. Por isso, considero importante que as pessoas que desconhecem a nossa causa venham ver aquilo que fazemos. Tenho a certeza que iriam ficar impressionadas. É diferente quando vão às lojas e são abordados pelos nossos voluntários, de quando veem realmente o ritmo e o ambiente que se vive aqui dentro. Vim a primeira vez e nunca mais deixei de vir.”
O ritmo de trabalho das equipas na recolha de alimentos é tão acelerado que a noção do tempo é quase inexistente. No interior do armazém de Alcântara, em Lisboa, onde a associação guarda os alimentos, os empilhadores avançam e recuam, sobem e descem sem parar. O número de sacos de enlatados, massa e arroz perde-se no meio de toneladas de alimentos. O cansaço dos voluntários é substituído pelo sentimento de missão cumprida. Num abrir e fechar de olhos, a luz do sol é substituída por iluminação artificial do teto do pavilhão. Ao microfone da Rádio Autónoma há já várias horas, Carla Lino prepara-se para encerrar a emissão, com o seu sorriso tímido que a voz não deixa transparecer. “Quando faço a emissão de fecho, no fim da Campanha do Banco Alimentar, existe um movimento que as pessoas lá fora não imaginam. Não têm noção da quantidade de sacos cheios de alimentos e o que implica, nem da forma como o voluntariado está organizado. É deslumbrante ver a quantidade de pessoas que participa e o ritmo como cada um desempenha a sua tarefa.”