Estavas a sair do estádio de futebol, o Campo Estrela, e a multidão avançava muito lentamente. Perguntaste ao teu pai por que razão era preciso andar tão devagar. E a resposta fez-te ver que, entre as pessoas, seguiam novos, velhos e coxos e, portanto, havia que ter paciência. E tu tiveste muita pena de que a velocidade final tivesse que ser o resultado médio de várias velocidades. O ideal, pensaste, era não existir essa dependência. Uma única velocidade seria qualquer coisa semelhante a um presente igualmente único que não fosse, também ele, escravo de vários passados e futuros. Um presente em que nada se alterasse, em que nada envelhecesse, em que aquilo a que não chamarias ainda felicidade fosse uma forma de limpidez.
Décadas depois, havia confinamento por causa de uma pandemia, e tu circulavas à volta do pátio a fazer exercício. Lembras-te do momento em que olhaste para as plantas e voltaste a perceber que existe tanta coisa no mundo de que não sabes o nome. E interrogaste: se ficasse aqui a viver para sempre sozinho e não precisasse de comunicar com mais ninguém, será que inventaria nomes para todas estas coisas? Certamente que sim, respondeste, mas não sob a forma de palavras, pois esses nomes invertebrados não teriam que ser ouvidos por outrem. Sem o sabor das palavras, esses nomes teriam um outro sabor que as palavras jamais atingiriam. Seriam nomes puros, concebidos apenas para nomear e não para terem que ser articulados, ouvidos, adequados ou até pensados. Seriam talvez os nomes com que Crátilo sonhou.
Uma vida com uma única velocidade, com um único presente e com uma gramática pura seria a vida ideal.
Paul Virilio foi um dos autores que mais acentuou o papel da velocidade no modo como edifica o nosso tempo, fazendo dela um misto de milagre e de parábola. No capítulo final de A velocidade da libertação, escreveu a seguinte nota sobre os impactos da energia cinética: “Desde há um quarto de século que a trajectografia substituiu a geografia. Há, a partir de agora, um trajeto independente de toda a localidade, mas sobretudo de toda a localização. Um trajecto inscrito apenas no tempo, um tempo astronómico que contamina progressivamente a multiplicidade de tempos locais” (…) “Da exocentração de um corpo em voo acima do solo, passamos de imediato à egocentração: o centro já não está situado no exterior, é ele próprio a sua referência, o seu eixo-motor”.
Kundera também glosou o tema da velocidade no romance A Lentidão, fazendo coexistir tempos e personagens muito diversos que contrastam, de modo paródico, com o ‘corre-corre’ ofegante dos nossos dias. Ao invés, Virilio tornou a velocidade na linha de força de todo o seu pensamento, recentrando-se nos mais diversos impactos suscitados pelas acelerações da “omniurbe” global. A deformação (efeito da velocidade), de que as fake news são hoje em dia uma ínfima parte, é uma das metáforas mais interessante para significar a ruptura no espaço que tende, hoje em dia, a ser a ilusão de um tempo irrevogavelmente constituído por sucessivas instantaneidades.
Escrevi sobre o tema há um quarto de século, em Anjos e Meteoros, tentando provar que a instantaneidade não é, de modo nenhum, uma questão actual. Ela começou por ser, nas escatologias e nas ideologias, um campo reivindicativo que exigia o cumprimento imediato e sem esperas das grandes promessas (os fraticelli, no início do século XV, e os militantes soviéticos de Kronstadt, no início do século XX, exigiam, no fundo, precisamente o mesmo). Na actualidade tecnológica, esta aspiração de cumprimento instantâneo deixou de ser uma reivindicação dirigida a um além (teológico ou ideológico, tanto faz) para passar a ser, no essencial, uma forma de vida fria e afastada das grandes causas. Carregar no ‘on’ e ver realizado um desejo imediato sublima e ilude esse cumprimento associado a devires superiores. É a felicidade da redenção a descer do céu à terra de modo inapercebido e invisível.
E tu, muito antes de pensares nestas atoardas de domingo à tarde, o que realmente querias… era voar por cima do Campo Estrela, levar o teu pai pela mão com asas de Chagall, transformares-te numa nuvem que destroçasse todas as explicações e, depois, inventariar apenas os pássaros e velejar nas grandes enchentes (havia ainda tantas palavras no ar para fixar nos teus grandes rolos).
(texto – apenas parcialmente – extraído de ‘Órbita-I: ‘Visão Aproximada’ e ‘Respiração Pensada’, títulos de obra de longo curso em trânsito)