O quebra-gelo foi o primeiro oásis que a vida te concedeu. Desçamos então do passado ao presente: na tua frente flui o rio Amstel e as casas flutuantes onde habitam pessoas feitas de água, tranquilas como o gelo que emagrece o olhar. Na outra margem os edifícios marcam a paridade de uma grande sala vazia. As bicicletas têm galochas que raspam o grão de brita, completamente alheias à acção da gravidade e aos remansos da esplanada. Sobre o estrado, as torres de aquecimento permitem unir os joelhos, fechar o sobretudo e ter a mão e o cachecol amarelo sobre as folhas de papel.
As vidraças do café percorrem toda a longitude que sopra de lés a lés nos acordes do violoncelo. Atrás do balcão, onde a islandesa (que é uma nuvem de beleza) apoia toda a brancura do corpo, encontra-se a galeria de arte e a sala de concertos. De lá chegam as grandes colheitas que fazem circular a manhã. O quebra-gelo, “Ijsbreker” no original, é um tiro com silenciador e sem necessidade de pistola. Por vezes nem o violoncelo se escuta, nem os pneus das bicicletas, nem o suspiro da islandesa que serve cappuccinos com a palidez dos lustres reflectidos no rio.
Ao fim da manhã, o teu amigo José M. Rodrigues chega da academia de arquitectura e senta-se ao teu lado para temperar as névoas que cobrem a ponte levadiça de madeiras claras. Ele é fotógrafo de arte e nas câmaras escuras que lhe conheceste compõem-se anos de luz avermelhada e indagam-se os melhores reveladores. Nesse dia exacto do fim de Fevereiro, corria o ano de 1983, tinhas acabo de imprimir o que viria a ser o teu primeiro romance, um momento histórico, sussurraste.
A passagem do cargueiro que tinha escrito “echo” junto à proa suspendeu a conversa por instantes. Segundos depois, parece que foi agora, levantas os braços no ar como fazem certos pássaros omnívoros que consomem vermes, bagas e frutos de pele lisa. E a resma de folhas dactilografadas, levada por um súbito golpe de vento, sobrevoou toda a esplanada, a estrada, os tampos das mesas e as amarras das casas flutuantes. Uma chuva de letras a pairar sobre todo o quebra-gelo que logo precedeu a feliz etapa de recolecção.
Ninguém na esplanada se furtou à tarefa: um verdadeiro polvo de garimpeiros à cata da pepita de ouro. Voltaste assim a reunir as sílabas, as linhas, as páginas. Terá falado uma única, é verdade. A tua poética de Aristóteles, disseste tu à islandesa, mas ela não compreendeu a graça, nem te ligou patavina (foi de pasmar a brancura da moça que parecia afinal inabitada).
Passado um trimestre sobre esse acontecimento, vendeste a aliança do teu primeiro casamento na loja de penhores para ir à ópera, de novo com o teu melhor amigo. Foi Lohengrin em três actos e, no último, o cisne desapareceu nas águas para logo reaparecer sob a forma de Gottfried, antes transformado em animal por obra de feitiço. Identificaste-te imediatamente com o jovem duque do Brabante (representado por um actor que nunca chegaria a cantar) por mudar de corpo para melhor manter a sua alma.
Depois foste a uma festa, era perto. A anfitriã, uma pintora e vídeo-artista, tinha o costume de colocar uma mangueira muito esticada por baixo do tecto sempre que as visitas lhe enchiam a sala. Quando as hostes aqueciam, toda a gente levantava os braços no ar com as mãos agarradas ao tubo, dando a sensação de que toda a humanidade viajava de metro. “Um metro que tem deus como última estação”, repetia ela num inglês que tinha as vogais assarapantadas por consoantes de faca cortante, coisa comum nas línguas semíticas.
A linguagem do metro infinito surgia como uma espécie de resolução desse problema que éramos nós. Nós, os humanos. Um problema que discorria em voz alta. Todas as pessoas riam furiosamente nessas noites, mesmo quando contavam histórias do holocausto envolvendo os pais, os tios ou os avós. Nessa altura, aprendeste a deixar de estranhar aquilo que cada um de nós não é. Tornaste-te, a pouco e pouco, no cisne que desaparecia e que reaparecia para desse modo receberes o sabor (e o saber) de seres sempre outro. A folha a menos do teu primeiro romance era afinal uma graça: uma estação de metro a menos no metro infinito desse luminoso e invulgar oásis que é a vida.
(texto parcialmente extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)